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25/06/2009

Revista Comunicação e Comunidade nº 12

Editorial

O encontro semanal no galpão de artes do Morro Chapéu Mangueira deu origem ao programa Versão do Passado. Muitas senhoras deixavam, naquele ambiente, histórias do passado da comunidade e das personalidades cruciais na formação do imaginário dos moradores. Duas senhoras aparecem nesses relatos como representação da força e altruísmo em prol da organização e desenvolvimento do lugar. São elas: Marcela, que fez parte das primeiras famílias de moradores do morro Chapéu Mangueira, e a missionária Renée de Lorme, pessoas que deixaram suas ideologias, ética e moral imbricadas no cotidiano da comunidade. Aparecem como as mais importantes personalidades na memória dos mais velhos, como podemos confirmar na oralidade dos moradores registrados nestas páginas. A idéia do Versão do Passado surgiu da vontade dessas senhoras, na liderança de Maria Augusta do Nascimento Silva, em deixar o registro de uma oralidade que pudesse ajudar a redescobrir as pessoas, seus costumes, sua origem, seus feitos na construção do lugar e na reconstituição de suas vidas, recuperando sentidos, sonhos, vitórias, fracassos, saudades... A oralidade do grupo, capturada pela tecnologia do audiovisual, mediada por universitários e professores, poderá, no futuro, ajudar na reconstrução dos princípios humanitários, e permitirá juntar os estilhaços da humanidade espalhados no progresso modernista contemporâneo. O registro feito em audiovisual já permite que jovens se reconheçam em suas histórias e admirem as personalidades do seu lugar. Os documentos gravados e transcritos para povoar as páginas da revista Comunicação & Comunidade denunciam a avareza dos poderosos, o modelo consumista, individualista, de privilégios dos méritos e sucessos produzidos artificialmente. Crítica que aparece no abstrato do texto, no contrário das afirmações, das alegrias e na saudade freqüente da solidariedade perdida. A oralidade desses moradores transcende a história narrada e lança novos desafios e velhas e boas reflexões. Acordou esses moradores, e seus sonhos de compartilhar o mundo foram retomados, lançando-os em novas experiências com o sentido de recuperar momentos comuns em suas trajetórias de vidas na utopia comunitária.

A partir destes desafios, surgiu, dos encontros dessas jovens senhoras, a vontade por passeios em busca de álibis para viverem mais intensamente suas histórias, na História. Assim, iniciou-se o movimento "Turismo Popular, a História ao alcance de todos".

A partir da simples oralidade de suas histórias, lendas e sonhos, percebemos, mais uma vez, o quanto somos semelhantes e que o humano é, por si mesmo, o dom natural que pode recuperar a comunidade perdida no seu ser, independente dos fatos históricos. O humano se alimenta da História, mas é mais do que ela (a História). É mais à medida que realiza, discretamente e em proporções quase invisíveis para o mundo histórico de hoje, a busca pelo espírito comum, só desejado e possível de realizar pelo ser humano. A História realimenta os sonhos em busca do paraíso perdido nos quatro cantos do mundo, desde que o universo nos doou o dom de podermos ser humanos. Claro que, nos ideais pós-modernistas, fica a interrogação sobre a possível perda das referências, das raízes, e, portanto, parece não haver lugar para uma idéia de comunidade. O excesso pelo virtual e hiper-real, pelo átimo e o não-lugar, não favorece em nada o sonho da comunidade fraternal e solidária, de humanos enlaçados pelo dom único de sua graça, a doação. Pois bem, o Turismo Popular reacendeu os sonhos. Essas senhoras, em tempos de redes e mais redes, que aproximam as pessoas, mantendo-as cada vez mais distantes corporalmente, resolvem se juntar para redescobrirem suas histórias e a história do seu lugar. Juntam-se saindo de suas casas, muitas vezes em lugares de difícil acesso nos morros onde moram, para andar pela cidade, confrontando os seus imaginários com a cidade e a História. Descobrem que suas histórias e ações para melhoria de suas comunidades quando não havia luz, água, casa de alvenaria... são histórias de movimento participativo e que a comunidade se constrói com a participação de todos. Não se pode ser comunidade no individualismo, na fragmentação, na competição desenfreada, na humilhação do outro. Talvez isso seja possível nas redes informatizadas, mas creio que não seja comunidade, apesar de ser a rede internet o lugar (se posso chamar assim) onde existe o maior número de "comunidades". Soube, outro dia, que é possível haver, nas redes "internautas", mais "comunidades" que grupos sociais no ecúmeno. O fenômeno é paradoxal, quanto mais grupos denominados comunidades, temos menos comunidades de fato.


Percebem, em seus caminhos pela cidade, nos pontos turísticos, parques e museus que a simplicidade de suas histórias, a realidade injusta em que vivem, é a mesma estampada nos quadros, livros e jornais históricos. As raízes estão fincadas na Colônia, alimentadas no Império e amadurecidas na República. Demonstram, com suas vontades, a sede de realidade que povoa nosso ser. A volição de reafirmar vidas, identidades que existem e resistem, é mais que isso, é a possibilidade que mantém a comunidade próxima ao portão da ilusão perdida pela humanidade. Trabalham e, com suor e marcas do azorrague, sustentam sua carcaça e seus sonhos. Nos sonhos, na liça da vida, enfrentam os descaminhos, as desconstruções provocadas pela modernidade e reafirmam o sentido da comunidade, lugar de união, de bem, liberdade, segurança, reciprocidade, solidariedade, lugar caloroso e desinteressado, onde a ajuda não aguarda retribuição. Lugar de entendimento. Atributos compartilhados e espontâneos ocorrem no coletivo tal como o ar está para cada ser vivo: naturalmente. Quando usamos artifícios para respirar, a vida corre risco. Da mesma forma, se uma comunidade precisa ser criada com artifícios, regulada com normas artificiais, ela, a comunidade, é artifício e, não, vida comum. Nesse caso, a vida comunitária corre risco, pois, se compreendo que a vida humana se dá no social e o social é comunitário com os atributos que definimos acima, como ver saúde em vidas individualizadas, onde é preciso ter cuidado e desconfiança para com o outro. Os mais velhos, a modernidade e as escolas educam para que os jovens não se misturem, não aceitem estranhos. Ensinam a ver com os olhos dos outros, a competir em lugar de compartilhar; em lugar de união, os contratos de separação; em lugar de contemplação desinteressada, o consumo utilitário, interessado e fútil.

A "comunidade verdadeira" é dada ao humano, é parte entranhada no ser, obrigando-o, sempre que se afasta, a recuperar a idéia do comum. Assim, o modelo produtivista em que estamos, nos afasta do nosso natural, obrigando-nos sempre a "invenções solidárias e fraternais" que nunca satisfazem, por serem artificiais, interessadas e, portanto, fúteis, pois são ações isoladas para manter as "comunidades artificiais". Não há sentimento com o coração próprio. Esse grupo de mulheres dos morros do Rio de Janeiro permite que outros sonhadores abram o portão e se aproximem da comunidade perdida, contemplem os laços de sua essência e sonhem com esse grupo vivendo com menos injustiça, na busca do alimento para suas vidas.

Prof. Nailton de Agostinho Maia



Os vídeos resultantes das entrevistas com os moradores encontram-se à disposição para consulta na Biblioteca da FACHA e na Associação de Moradores do Chapéu Mangueira.
A Revista Comunicação & Comunidade é editada pelo Núcleo de Educação e Comunicação Comunitária (NECC), programa do Escritório de Relações Públicas (ERP) das Faculdades Integradas Hélio Alonso.
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